
O discreto charme do desmanche.
Por Valéria Monteiro.
Há um clima de devolução de biblioteca nas clínicas estéticas.
As pessoas chegam com a mesma elegância constrangida de quem devolve um livro atrasado:
— “Eu gostaria de retornar estes lábios.”
— “Este queixo não correspondeu às expectativas.”
— “Seria possível reaver minhas maçãs do rosto originais?”
Chamam isso de reversão estética, mas o nome não faz jus à operação arqueológica em curso: encontrar o rosto que deixamos perder-se em algum momento entre 2016 e o primeiro filtro de alisamento completo.
A fadiga do aperfeiçoamento
A era dos filtros nos convenceu de que o rosto real tinha obrigação de acompanhar sua versão digital — uma exigência comparável a pedir que um gato se comporte como um mordomo inglês.
O espelho, porém, sempre foi um funcionário honesto.
E um dia devolveu a verdade sem rodeios:
“Não posso endossar este projeto.”
Foi o suficiente para iniciar o desmanche.
Próteses com prazo de validade emocional
As próteses não são as vilãs. Elas só cumpriram a tarefa para a qual foram convocadas.
Mas esperar delas uma solução para ansiedades humanas talvez tenha sido ambicioso demais.
Não por acaso, muitas estão saindo em silêncio, como visitas educadas que perceberam ter ficado tempo demais.
O fim da monocultura facial
Durante alguns anos, o “rosto padrão internacional” imperou:
bochechas geométricas, lábios uniformemente exuberantes, sobrancelhas em posição permanente de “estou levemente impressionada”.
Era uma estética tão homogênea que até os algoritmos tinham dificuldade de identificar quem era quem.
O desmanche devolve algo precioso: a assimetria — talvez o último traço genuinamente humano.
O corpo, sempre ele
Com extrema polidez, o corpo começou a dar sinais de que não estava confortável.
Um pequeno repuxar aqui, uma rigidez ali.
Sinais discretos, quase um bilhete:
“Desculpe incomodar, mas poderíamos repensar esse plano?”
E repensamos.
Natural, o novo luxo
Não se trata de renunciar à vaidade — longe disso.
Apenas de admitir que a naturalidade, hoje, é um bem de luxo.
E, ironicamente, algumas pessoas precisarão de um processo inteiro para alcançá-la.
É o tipo de paradoxo que só a vida moderna poderia produzir.
No fim, tudo muito civilizado
O desmanche não é rebeldia.
É sensatez reencontrando seu caminho — com uma pitada de humor involuntário.
E talvez, pela primeira vez em muito tempo, estejamos voltando a nós mesmas com menos filtros, menos volume… e muito mais leveza.
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🇬🇧 ENGLISH VERSION
The discreet charm of un-doing
When even collagen asks for a break
Meta Description:
A witty, refined look at the trend of reversing aesthetic procedures — and the elegant return to one’s real face.
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There’s a certain “library return desk” atmosphere in aesthetic clinics these days.
People arrive with the polite embarrassment of someone handing back an overdue book:
— “I’d like to return these lips.”
— “This chin did not meet expectations.”
— “Could I possibly have my original cheekbones back?”
They call it aesthetic reversal, but that feels too modest.
It’s more like an archaeological rescue mission: retrieving the face we misplaced somewhere around 2016.
The fatigue of perfection
The filter era convinced us that the real face must keep up with its digital version — a demand as unreasonable as asking a cat to behave like an English butler.
Eventually, the mirror — always an honest employee — refused to cooperate:
“I’m afraid I cannot support this initiative.”
Thus began the un-doing.
Implants with emotional expiration dates
Implants were never the villains.
They performed their duties dutifully.
But expecting them to solve existential insecurities was… optimistic.
Small wonder many are now leaving discreetly, like houseguests who sense it’s time to go.
The end of facial monoculture
For a few years, the “international standard face” reigned:
geometric cheekbones, uniformly inflated lips, brows forever frozen in polite curiosity.
The homogeneity became so thorough that even algorithms struggled to distinguish people.
Un-doing restores something precious: asymmetry — perhaps the last truly human feature.
The body, ever diplomatic
With impeccable courtesy, the body began leaving hints of discomfort:
a tension here, a stiffness there.
A subtle note:
“Terribly sorry—might we reconsider this plan?”
And reconsider we did.
Natural is the new luxury
This is not the end of vanity; don’t fret.
It’s simply the realization that naturalness has become a luxury good.
A luxury, paradoxically, that sometimes demands a complex procedure.
Modern life excels in such ironies.
In the end, quietly civilized
Un-doing isn’t rebellion.
It’s common sense returning from um exile — with understated humor and a sigh of relief.
Perhaps for the first time in a long time, we are returning to ourselves with fewer filters, less volume… and considerably more grace.

Valéria Monteiro.
Jornalista, fundadora do site valeriamonteiro.com.br
e ex-âncora da TV Globo e Bloomberg.
23 de novembro de 2025 às 13:01:22

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