Antes do ataque cardíaco.
Por Valéria Monteiro.
Responsabilidade, comprometimento e posicionamento são conceitos que costumam aparecer em discursos solenes, no mundo do trabalho ou na política. Mas a verdade é que essa tríade atravessa todas as dimensões da vida — do íntimo ao público — e molda tanto os vínculos pessoais quanto a imagem que projetamos no mundo.
A responsabilidade é o ponto de partida: reconhecer que cada palavra ou gesto tem consequências. Não se trata apenas de grandes decisões, mas também das pequenas atitudes que, repetidas, vão construindo (ou corroendo) a confiança. Dentro da família e entre amigos, essa consciência é vital, pois cada silêncio ou descuido deixa marcas.
Mas a responsabilidade só se concretiza quando se transforma em comprometimento. Comprometer-se é estar presente de verdade, não apenas por convenção. É dedicar tempo e atenção aos filhos, mesmo no meio da pressa. É apoiar os amigos nos dias difíceis, e não só nos de festa. É cultivar com constância os laços que dão firmeza à vida.
E esse compromisso não desaparece com a distância. Mesmo quando a convivência não é cotidiana, a tríade permanece. Sentimos isso nos vínculos que resistem ao tempo e à geografia: amigos que vemos pouco, familiares que moram longe, mas com quem continuamos próximos porque as escolhas que fundaram a relação seguem vivas. São laços que não dependem apenas da presença física, mas da qualidade com que foram construídos.
O posicionamento fecha essa tríade. Não basta sentir amor em silêncio ou valorizar a amizade sem demonstrar. É preciso se colocar: dizer “estou aqui”, defender valores, não permitir que a conveniência ou a omissão guiem nossas escolhas. É o posicionamento que dá forma concreta à responsabilidade e ao compromisso.
Na minha infância, aprendi de maneira dura como a falta de posicionamento pode ferir. Meu pai, às vezes, inventava uma bronca para dar em mim, na minha irmã ou na minha mãe — uma bronca que não merecíamos — apenas para mandar um recado a alguém de fora. O curioso é que, muitas vezes, quem deveria ouvir nem percebia. Ou seja, nós levávamos a bronca e o recado seguia pelo ar, solto, sem destinatário. E, ao longo do tempo, isso ainda podia distorcer a percepção de quem assistia de fora: como se fôssemos nós as merecedoras daquele tom, quando, na verdade, estávamos apenas nos responsabilizando — sem querer — pela falta de posicionamento e de compromisso dele.
Esse exemplo me ensinou que, mesmo em gestos banais, a tríade se impõe. A responsabilidade de medir as consequências. O comprometimento de proteger, e não expor, aqueles que amamos. O posicionamento de escolher a clareza, em vez de atalhos que confundem uns e magoam outros.
E o que vale no íntimo também vale no coletivo. Uma liderança que se esquiva de se posicionar fragiliza a confiança. Um profissional que assume responsabilidades sem compromisso perde credibilidade. Uma sociedade que trata os vínculos como garantidos, sem cultivá-los, acaba corroendo sua própria base.
O ponto é que o posicionamento é inevitável. Mesmo que você tente fugir dele, em algum momento será confrontado com a necessidade de se colocar. A diferença é que se pode escolher antecipar esse momento — afirmar a própria voz antes que a circunstância obrigue a reagir. Quando isso não acontece, o encontro com o posicionamento costuma vir acompanhado de cobranças acumuladas: a falta de responsabilidade que se ignorou, o compromisso que não se manteve. Tudo junto e misturado, exigindo resposta imediata.
As relações que preservam responsabilidade, comprometimento e posicionamento envolvem consciência. Exigem que cultivemos intuições alinhadas a valores humanos intrínsecos e que exercitemos diariamente essa atenção. Pode não ser fácil, mas é isso que torna os vínculos verdadeiramente construtivos, duradouros e significativos. É nesse exercício constante — e na coragem de antecipar escolhas inevitáveis — que se revela o verdadeiro caráter de cada relação. E, quem sabe, é justamente isso que pode até nos poupar de um ataque cardíaco: porque viver em coerência, sem precisar carregar farsas ou broncas alheias, libera o coração do peso que nunca lhe pertenceu.
Inglês:
Before the Heart Attack
Responsibility, commitment, and positioning are words often heard in formal speeches, in politics, or at work. But the truth is, this triad runs through every dimension of life — from the most intimate to the most public — and shapes not only our relationships but also the image we project to the world.
Responsibility is the starting point: recognizing that every word or gesture carries consequences. It is not only about major decisions but also the small, repeated actions that, over time, build — or corrode — trust. Within families and friendships, this awareness is vital, for every silence or lapse leaves a mark.
But responsibility only becomes real when it turns into commitment. To be committed is to be truly present, not just out of convention. It is to give time and attention to children even in the rush of daily life. It is to support friends not only in moments of joy but also in times of difficulty. It is to nurture, with constancy, the bonds that give life its strength.
And that commitment does not disappear with distance. Even when daily presence is not possible, the triad still holds. We feel it in the relationships that endure despite time and geography: friends we seldom see, relatives who live far away, but with whom we remain close because the choices that founded the bond remain alive. These ties do not depend solely on physical presence but on the quality with which they were built.
Positioning completes the triad. It is not enough to feel love in silence or to value friendship without showing it. One must step forward: say “I’m here,” defend values, refuse to let convenience or omission guide one’s actions. Positioning gives concrete shape to responsibility and commitment.
In my childhood, I learned painfully how the lack of positioning can wound. My father would sometimes invent a scolding for me, my sister, or my mother — reprimands we did not deserve — just to send a message to someone outside. The irony was that, often, the intended recipient never even noticed. We bore the blame while the message drifted into the air, untethered. And, over time, this distorted how others perceived us: as though we truly were the ones deserving of that tone. In reality, we were unknowingly taking on the burden of his lack of positioning and commitment.
That experience taught me that even in ordinary gestures, the triad asserts itself. The responsibility to weigh consequences. The commitment to protect rather than expose those we love. The positioning to choose clarity over shortcuts that confuse some and hurt others.
What is true in private life is also true collectively. A leader who avoids taking a stance weakens trust. A professional who assumes responsibility without true commitment loses credibility. A society that treats bonds as guaranteed, without cultivating them, erodes its very foundations.
The fact is, positioning is inevitable. Even if you try to escape it, eventually you will be confronted with the need to take a stand. The difference lies in choosing to anticipate that moment — to affirm your voice before circumstances force you to react. Otherwise, when positioning arrives, it comes tangled with accumulated charges: the responsibility ignored, the commitment abandoned. All at once, demanding immediate response.
Relationships that preserve responsibility, commitment, and positioning demand awareness. They require us to cultivate intuitions aligned with intrinsic human values and to practice this attention daily. It may not be easy, but this is what makes bonds truly constructive, lasting, and meaningful. It is in this constant exercise — and in the courage to anticipate inevitable choices — that the true character of each relationship is revealed. And perhaps this is what can even spare us a heart attack: for living in coherence, without carrying burdens that are not ours, frees the heart from weights it was never meant to bear.

Valéria Monteiro.
Jornalista, fundadora do site valeriamonteiro.com.br
e ex-âncora da TV Globo e Bloomberg.
18 de ago. de 2025

Leia Também
De quem é Nova York.
Entre despejos e arranha-céus, a eleição de Zohran Mamdani redefine a ideia de cidade — e desafia o capital global.

