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Entre a Lei e a Força:

A vulnerabilidade do Brasil diante da reedição da retórica da segurança.

Entre a Lei e a Força:

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil.

Há palavras que, no Brasil, sempre voltam com o eco de uma ameaça.
“Segurança” é uma delas.

(scroll down for English)

Desde a Guerra Fria, a retórica da proteção interna tem servido, não raro, como senha para a vulnerabilidade nacional.
Em 1964, o discurso da “defesa contra o comunismo” abriu caminho à influência norte-americana e à ruptura democrática.
Hoje, sob outro vocabulário — “guerra às facções”, “lei e ordem”, “cooperação internacional” —, a narrativa ressurge, atualizada e globalizada, sustentando novos pactos de poder.

O que se repete, sob nova forma, é o mesmo enredo: a política do medo travestida de patriotismo.



O chamado “projeto antifacção”, elaborado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, sob comando do ministro Ricardo Lewandowski, nasceu em 2024 com o propósito de coordenar o combate ao crime organizado de maneira técnica e dentro dos limites constitucionais.
Mas, ao chegar ao Congresso, o texto foi reconfigurado — endureceu penas, equiparou facções a terrorismo e reduziu o papel da União, abrindo espaço para uma agenda ideológica que mistura segurança com soberania.

Desde então, a disputa pela lei tornou-se o espelho de uma disputa mais ampla: a da narrativa sobre quem protege o país — e a que custo.



🧩 1. O fio que liga o discurso “antifacção” ao trumpismo

Há um padrão retórico claro — tanto em Donald Trump quanto em Jair Bolsonaro e seus aliados — de usar a promessa de segurança como ferramenta de polarização e legitimação política.

Nos EUA, Trump fez isso com o lema “law and order”, prometendo “limpar as ruas” e prender opositores (“lock her up”).
No Brasil, o bolsonarismo ecoou o método: “bandido bom é bandido morto”, “o sistema protege criminosos”, “a autoridade está sob ataque”.

Agora, sob o rótulo de “combate às facções”, o populismo penal reaparece com nova roupagem:
• substitui o debate técnico por slogans morais (“bem x mal”);
• militariza a política interna;
• e tenta deslegitimar instituições civis — como STF, Ministério Público e imprensa — sob o argumento de que “impedem o combate ao crime”.

É a lógica que, em regimes populistas, abre espaço para medidas de exceção disfarçadas de lei, como se viu na Hungria de Orbán, na Turquia de Erdoğan e, décadas antes, no Chile de Pinochet, onde a “guerra ao comunismo” justificou o arbítrio em nome da segurança.



🇧🇷🇺🇸 2. A retórica da intervenção norte-americana

Os movimentos recentes dos filhos de Jair Bolsonaro reavivam essa conexão transnacional.
Eduardo Bolsonaro, ainda baseado nos Estados Unidos, mantém vínculos com redes trumpistas e grupos que tratam segurança e moral como sinônimos.
Flávio Bolsonaro, no Senado, reaparece em discursos sobre cooperação militar com os EUA, sob o pretexto do combate ao tráfico.

Essa retórica — mesmo quando dita de forma “irônica” — não é inocente:
• sugere incapacidade do Estado brasileiro, justificando “colaborações externas”;
• reabilita a lógica da tutela norte-americana, usada durante a Guerra Fria;
• e naturaliza a ideia de ingerência, travestindo dependência de parceria.

Trata-se de um reencantamento da influência estadunidense — agora moral e simbólica, sustentada pela retórica da segurança.
O risco é que a cooperação internacional se converta, mais uma vez, em porta aberta à submissão política.



⚖️ 3. O elo com o projeto antifacção

Ao associar o discurso “antifacção” à retórica global “antiterror”, parte do Congresso tenta fundir segurança pública interna e segurança nacional, dissolvendo fronteiras entre crime e inimigo.
Essa fusão é típica de contextos autoritários: a criminalidade comum se transforma em ameaça de Estado.

Quando se equipara facções a terrorismo, o resultado é:
• redução das exigências de prova, ampliando poderes de investigação;
• cooperação automática com forças estrangeiras;
• e brecha para o uso político da lei, que pode alcançar dissidentes e movimentos sociais.

A consequência prática é a erosão da legalidade — uma exceção jurídica em potencial pronta para ser ativada quando o ambiente político for propício.



🧠 4. A leitura política do momento

O que está em disputa não é apenas uma lei, mas a soberania do discurso sobre o que é proteger o país.

De um lado, o governo tenta reconstruir o pacto federativo da segurança, com base em inteligência e integração institucional.
Do outro, a oposição instrumentaliza o medo — reeditando o “discurso de guerra” que em 2018 a levou ao poder.

Essa insistência em pautas punitivistas e alterações legislativas apressadas funciona como braço discursivo de um golpismo difuso:
não o das armas e quartéis, mas o que se infiltra nas leis e emoções — o golpe por dentro, que fragiliza instituições civis e prepara terreno simbólico para medidas de exceção.



🟩 Conclusão

Em tempos de tensão institucional, toda proposta de endurecimento penal precisa ser lida não apenas pelo que diz, mas pelo que pode autorizar.

O combate ao crime não pode se transformar em senha para o autoritarismo — nem no Brasil, nem sob influência estrangeira.

A segurança pública não pode ser o novo disfarce da intervenção política.

🕊️ Nota Editorial

Este artigo reflete uma análise independente baseada em fatos públicos e fontes verificadas.
Seu objetivo é ampliar a compreensão sobre as narrativas políticas que moldam o debate público, sem representar filiação partidária ou interesse institucional.

🇬🇧 English Version

🟩 Between Law and Force

Brazil’s vulnerability amid the revival of the security narrative



In Brazil, few words carry such a persistent echo of threat as “security.”
Since the Cold War, the rhetoric of internal protection has often served as a code for national vulnerability.
In 1964, the discourse of “defense against communism” paved the way for U.S. influence and the military coup.
Today, under new labels — “war on factions,” “law and order,” “international cooperation” — the same narrative resurfaces, modernized and globalized, sustaining new forms of control.

The story repeats itself, in new language: the politics of fear disguised as patriotism.



Originally drafted by the Ministry of Justice, led by Minister Ricardo Lewandowski, the anti-faction bill sought in 2024 to coordinate Brazil’s response to organized crime within constitutional limits.
In Congress, it was reshaped — harsher penalties, terrorism equivalence, reduced federal role — turning a technical policy into an ideological banner.
Since then, the debate has exposed something deeper: a struggle over who defines protection — and in whose interest.



🧩 1. The thread connecting “anti-faction” discourse and Trumpism

A clear rhetorical pattern unites Donald Trump and Jair Bolsonaro’s movement: the use of law and order as a political weapon of polarization.
Trump built it around “cleaning up the streets” and punishing opponents; Bolsonaro echoed it through slogans like “good criminal is a dead criminal.”

Now, as Bolsonarism pushes to amend laws under the guise of fighting crime, the same logic reappears:
• technical debate gives way to moral dichotomy;
• domestic politics becomes militarized;
• and civil institutions — courts, press, prosecutors — are portrayed as obstacles to justice.

This is the rhetorical bridge that, in other nations, opened paths to legalized authoritarianism — from Orbán’s Hungary to Pinochet’s Chile — where “national defense” masked internal control.



🇧🇷🇺🇸 2. The rhetoric of U.S. tutelage

The Bolsonaro family’s outreach to U.S. networks keeps this script alive.
Eduardo Bolsonaro, still active in Trump-aligned circles, promotes the moralization of security discourse;
Flávio Bolsonaro, from the Senate, invokes military cooperation with the U.S. as a solution to crime.

Behind such gestures lies the same Cold War logic:
• portraying the Brazilian state as incapable or corrupt;
• legitimizing “external collaboration” as moral salvation;
• and reinforcing the idea of a Latin America in need of tutelage.

Even when phrased as jest, this rhetoric normalizes dependence and gives authoritarianism a moral halo.



⚖️ 3. The link with the anti-faction bill

By aligning the “anti-faction” discourse with global “anti-terror” narratives, lawmakers like Miguel Derrite blur the line between public security and national defense.
Ordinary crime becomes a State threat, allowing for expanded surveillance, automatic foreign cooperation, and politicized law enforcement.

Such measures risk creating a legal architecture of exception — one that remains dormant until the next political storm.



🧠 4. Reading the political moment

What unfolds in Brazil is not just a legislative battle, but a symbolic struggle over sovereignty.
The government seeks coordination and intelligence; the opposition resurrects the war discourse that fueled 2018.

This punitive insistence is a rhetorical arm of modern authoritarianism — not the coup of tanks and boots, but the coup within the law, driven by fear and faith in force.



🟩 Conclusion

In times of institutional tension, every proposal to toughen criminal law must be read not only for what it says, but for what it authorizes.

The fight against crime cannot become a passcode for authoritarianism — neither in Brazil nor under foreign influence.

Public security must never become the disguise of political intervention.



🕊️ Nota Editorial

This article reflects an independent analysis based on verified public information.
Its purpose is to deepen understanding of the political narratives shaping public debate, without partisan alignment or institutional bias.

Valéria Monteiro.
Jornalista, fundadora do site valeriamonteiro.com.br
e ex-âncora da TV Globo e Bloomberg.

12 de nov. de 2025

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