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IOF,

Redistribuição e a Chantagem do Discurso Moral.

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Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil.

Nos últimos dias, as redes sociais viraram palco de mais uma batalha moral. De um lado, vídeos inflamados acusando o governo de confiscar a classe média com uma avalanche de impostos. Do outro, defesas apaixonadas do novo modelo tributário proposto por Fernando Haddad, apresentado como necessário, justo e progressista. No centro, o IOF — imposto sobre operações financeiras — virou símbolo de algo maior: a disputa por quem paga a conta do país.

Mas essa guerra de narrativas não brota do nada. Ela reflete uma disputa real — e ruidosa — entre o Executivo e o Congresso, onde personalidades políticas transformam o interesse público em enredo pessoal de afirmação. A proposta original do governo, que tinha ambição de reorganizar prioridades fiscais e enfrentar privilégios históricos, foi recebida com resistência por deputados e senadores mais interessados em proteger suas bases eleitorais e seus grupos de influência. O palco digital virou continuação do plenário — com memes, cortes de vídeo, pressões veladas e recados públicos que mais parecem chantagens performáticas.

O que me chama atenção não é apenas o imposto em si, mas a maneira como o debate tem sido conduzido: como se houvesse apenas dois lados possíveis — ou você defende a proposta do governo sem reservas, ou está automaticamente alinhado à extrema direita. Essa lógica binária silencia a crítica honesta e torna impossível discutir o que realmente importa: a estrutura de distribuição de riqueza no Brasil e seus limites políticos e simbólicos.



Quem são, afinal, os que “mais precisam”?

A proposta do governo afirma com clareza: é hora de tributar os mais ricos e aliviar os mais pobres. A intenção é louvável — e concreta. O plano inclui a taxação de investimentos antes isentos, o fim de benefícios fiscais seletivos e o aumento da carga sobre setores altamente lucrativos e pouco tributados, como as apostas esportivas e as fintechs.

Não se trata de uma política improvisada. Há cálculo, estratégia e um esforço real de reorganizar as prioridades tributárias do país — algo raro e necessário. Ainda assim, a pergunta que escapa do discurso técnico é: e a enorme parcela da população que não se sente representada nem no topo nem na base?

A chamada “classe média no osso”, que vive de salário em salário, que paga escola, plano de saúde e ainda sustenta uma infinidade de micro economias locais, raramente aparece nos discursos como destinatária de justiça fiscal. Ao mesmo tempo, grupos com maior poder de influência institucional seguem preservando seus interesses, orbitando os centros de decisão.



O IOF pode ser uma ferramenta justa?

Sim, e a proposta de Haddad mostra isso. Ao tentar modernizar o sistema tributário e focar na progressividade, o governo sinaliza que entende os dilemas contemporâneos da economia digital e concentrada. Mas mesmo boas intenções exigem transparência e escuta.

Para onde exatamente vão os recursos arrecadados? Quais programas sociais serão expandidos? Que metas públicas acompanham essa arrecadação? Sem um compromisso claro com a prestação de contas, o argumento nobre da justiça social corre o risco de se perder em opacidade técnica.

Além disso, a forma como o debate vem sendo conduzido — dentro e fora do governo — dá pouca margem para dissenso interno. Críticas legítimas, inclusive vindas de dentro do campo progressista, muitas vezes são taxadas de traição. O apelido “Taxad”, que certos setores usam como ataque cínico, também serve como cortina de fumaça para abafar discussões mais profundas sobre a lógica do sistema.



E se o erro for a própria pirâmide?

Mais do que discutir se o IOF é justo ou não, talvez devêssemos perguntar se não está na hora de pensar fora da própria estrutura em que essas decisões são tomadas.

Modelos como renda básica universal, moedas sociais, plataformas públicas, tributação efetiva de grandes fortunas digitais e fortalecimento da economia do cuidado vêm sendo defendidos em várias partes do mundo — inclusive por candidatos a governos locais em metrópoles como Nova York.

Mas quando essas ideias emergem no Brasil, são tratadas como ameaças ao equilíbrio fiscal. E não porque sejam inviáveis, mas porque rompem com uma lógica que cresce para poucos e ajusta para muitos.

Projetos fora da “pirâmide” não fracassam por natureza — são muitas vezes sabotados antes de amadurecer, porque redistribuem não só renda, mas poder.



Haddad não é o problema. Mas os limites do possível talvez sejam.

A proposta econômica do ministro Haddad tem méritos e fundamentos. Não é uma invenção irresponsável nem uma vingança contra o capital, como parte da oposição quer fazer parecer. Mas também não está imune às críticas que apontam os limites de uma política pública ainda presa a estruturas que, embora reformadas, seguem sustentando uma ordem injusta.

Questionar esse modelo não é ser contra o governo — é querer empurrá-lo além da moldura que o aprisiona. Porque sem crítica, não há transformação. E sem imaginação, não há futuro.

Valéria Monteiro.
Jornalista, fundadora do site valeriamonteiro.com.br
e ex-âncora da TV Globo e Bloomberg.

1 de jul. de 2025

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