Marx, o mito conveniente da “preguiça.”
E o que ele revela sobre nós.

Foto: Wikipédia.
Volta e meia reaparece nas redes aquela velha caricatura: Karl Marx seria um “encostado na mulher”, alguém que não queria trabalhar e por isso teria inventado uma teoria para justificar a própria suposta indolência. É um meme fácil, apelativo — e totalmente desconectado dos fatos. Mas, acima de tudo, diz mais sobre quem o compartilha do que sobre Marx.
(scroll down for English ↓)
Por trás dessa narrativa existe uma estratégia simples: se você desqualifica a figura, não precisa lidar com a força das ideias. É mais confortável rir de um estereótipo do que encarar as contradições que Marx descreveu — contradições que continuam gritando em pleno século XXI.
Marx não viveu uma vida de estabilidade burguesa. Ao contrário: enfrentou censura, exílio, perseguição política, pobreza intensa e tragédias familiares que o devastaram. O trabalho intelectual, para ele, não foi fuga — foi sobrevivência. Foi o esforço obstinado de compreender um mundo que esmagava trabalhadores e crianças nas fábricas de 12 ou 14 horas diárias, enquanto construía fortunas para uma elite emergente.
Chamar isso de “não trabalhar” revela, na verdade, uma visão estreita do que é trabalho. Escrita, pesquisa, edição, organização política e produção teórica não cabem nesse imaginário — um imaginário que ainda hoje desvaloriza professores, cientistas, jornalistas e qualquer labor que não seja medido por planilhas corporativas.
Mas este artigo não é uma defesa biográfica. É um convite.
Você não precisa concordar com Marx — ninguém é obrigado. Mas desconhecer Marx e, mesmo assim, repetir caricaturas sobre ele… isso sim empobrece o debate público.
Porque, gostemos ou não, vivemos em um mundo moldado por questões que ele enxergou com uma clareza desconfortável: a concentração de riqueza, o poder das corporações, o esvaziamento humano do trabalho, e a tensão permanente entre capital e vida.
Se queremos discutir honestamente o Brasil e o século XXI, jogar memes no lugar de pensamento é pouco. Muito pouco.
Para ler e entender melhor
• Ricardo Antunes — “Os Sentidos do Trabalho”
Considerado um clássico contemporâneo, aprofunda as transformações do trabalho e o legado crítico de Marx na era digital.
• Karl Marx — “Manuscritos Econômico-Filosóficos”
Porta de entrada para compreender sua visão sobre alienação e humanidade.
• Raoul Peck — “O Jovem Karl Marx” (filme)
Excelente para visualizar o contexto histórico sem cair em folclores.
Falar de Marx exige mais do que repassar piadas.
Exige que a gente pense.
E isso — sempre — incomoda muita gente.
⸻
Inglês:
The Convenient Myth of Marx the “Freeloader” — and What It Says About Us.
Every now and then, that familiar caricature reappears on social media: Karl Marx as a “lazy husband living off his wife,” a man who supposedly refused to work and therefore invented a theory to justify his idleness.
It’s an easy meme — catchy, reductive, and completely detached from reality.
But above all, it reveals more about those who share it than about Marx himself.
Behind this narrative lies a simple strategy: if you disqualify the person, you no longer need to confront the power of the ideas. Mocking a stereotype is always more comfortable than engaging with the contradictions Marx exposed — contradictions that remain painfully present in the 21st century.
Marx did not live a life of bourgeois comfort. He faced censorship, exile, political persecution, severe poverty and heartbreaking family losses. Intellectual work, for him, was not an escape — it was survival. It was the persistent effort to understand a world that crushed workers and children in 12- or 14-hour factory shifts while building fortunes for a rising elite.
Calling that “not working” reveals, instead, a narrow idea of what work truly is. Writing, researching, editing, organizing, and producing theory do not fit the imagination of those who still undervalue teachers, scientists, journalists, and every form of labor that cannot be neatly quantified on a corporate spreadsheet.
But this article is not a biographical defense.
It is an invitation.
You don’t need to agree with Marx — no one must.
But to ignore him and still repeat caricatures… that impoverishes public debate.
Whether we like it or not, we live in a world shaped by the very forces he described with uncomfortable clarity: the concentration of wealth, the rise of corporate power, the dehumanization of labor, and the ongoing tension between capital and life.
If we want to discuss Brazil — or the 21st century — with honesty, memes are not enough.
Recommended Reading
• Ricardo Antunes — “The Meanings of Work”
A contemporary classic that examines transformations in labor and Marx’s critical legacy in the digital era.
• Karl Marx — “Economic and Philosophic Manuscripts of 1844”
A fundamental entry point to understand his concepts of alienation and humanism.
• Raoul Peck — “The Young Karl Marx” (film)
A compelling way to visualize the historical context beyond the internet folklore.
Talking about Marx requires more than repeating jokes.
It requires thinking.
And that — always — makes some people uncomfortable.

Valéria Monteiro.
Jornalista, fundadora do site valeriamonteiro.com.br
e ex-âncora da TV Globo e Bloomberg.
24 de nov. de 2025

Leia Também
De quem é Nova York.
Entre despejos e arranha-céus, a eleição de Zohran Mamdani redefine a ideia de cidade — e desafia o capital global.
