top of page

Por que não aguentamos mais seguir o noticiário?

Por Valéria Monteiro.

Por que não aguentamos mais seguir o noticiário?

Falta um ano para as eleições municipais. E, no entanto, o sentimento que paira no ar é de desligamento. Desligamento do noticiário, das decisões políticas, das próprias palavras que circulam em manchetes e timelines. As pessoas não apenas deixaram de se interessar pela política — elas deixaram de tentar entender o que está acontecendo.

É como se o noticiário tivesse se tornado uma espécie de teatro surrealista, em que as falas não fazem sentido, os personagens se contradizem, e o enredo muda de tom e direção a cada hora. A sensação não é só de desinformação, mas de exaustão cognitiva. E a pergunta que se impõe é: por que estamos assim?



🌀 O excesso de informação é uma forma de desinformação

Na era do excesso, informar não é mais suficiente. A mente humana, como demonstraram Tversky e Kahneman em estudos pioneiros de psicologia comportamental, não lida bem com sobrecarga. Quando há dados demais e conexões de menos, o cérebro recorre a atalhos mentais, como buscar apenas o que confirma nossas crenças prévias ou ceder à primeira narrativa emocional que aparece.

Essa avalanche de notícias desconexas e conflitantes — típica do jornalismo 24/7 — não esclarece, embaralha. Em vez de formar um mosaico coerente da realidade, ela dissolve a capacidade de compreender o todo. E quando compreender exige esforço demais, desistimos.



🎭 A política virou performance — e o noticiário, espetáculo

O filósofo francês Guy Debord alertava, ainda nos anos 1960, que vivíamos numa “sociedade do espetáculo”, em que os eventos reais seriam substituídos por representações. O que vemos hoje no noticiário é isso: encenações públicas de poder, cortes de câmera bem editados, frases de efeito pensadas para viralizar, e gestos calculados para atingir plateias específicas.

A política, nesse contexto, não é mais o espaço do debate de ideias, mas um reality show contínuo. E como todo programa que se repete demais, ele cansa.



🧩 A lógica política foi subvertida

Há também um elemento mais profundo: a corrupção da própria lógica do sistema democrático. Não apenas por desvios éticos ou casos policiais, mas por uma falência estrutural do modelo de representação. Como apontam Pierre Rosanvallon e Bernard Manin, vivemos uma crise de legitimidade: as pessoas não se sentem representadas, e isso desmobiliza o interesse coletivo.

A resposta institucional a isso não tem sido aproximar, mas afastar ainda mais: alianças incoerentes, siglas negociadas como mercadoria, manobras jurídicas que burlam o espírito da lei. O noticiário político, ao cobrir esse circo, parece incoerente não porque relata mal — mas porque o próprio sistema perdeu coerência.



📺 Surrealismo não é fácil de entender

Muitos leitores hoje assistem ao noticiário com a mesma sensação que teriam diante de um filme de David Lynch: o estranho familiar, o absurdo normalizado, o grotesco que virou cotidiano.

Essa sensação não é delírio coletivo. É resultado de um processo que o filósofo Jean Baudrillard chamou de simulacro — quando a representação substitui o real. Quando políticos posam de “homens do povo” após reuniões com banqueiros. Quando narrativas de “liberdade” servem para justificar censura, e apelos à “moral” ocultam crimes.

O real foi sequestrado. E o que resta ao público é um misto de riso nervoso, cinismo e fuga.



🔒 A ignorância como estratégia de poder

Mas o mais perverso é que essa confusão não é acidental — é estratégica. Como demonstrou Robert Proctor ao formular o conceito de agnotologia, a produção deliberada de ignorância é um instrumento de dominação. Confundir, embaralhar, criar zonas cinzentas — tudo isso serve para desmobilizar. E uma população desmobilizada não vota com consciência, não protesta com clareza, não exige com firmeza.



🗳️ E agora? Um ano até as eleições

A um ano do próximo ciclo eleitoral, é urgente que recuperemos a capacidade de entender o que está acontecendo. Não apenas para escolher candidatos, mas para reconstruir uma ética do público, do comum, do compartilhado.

Isso exige mídia mais responsável, educação crítica para a informação, e uma reconexão profunda com a política — não como teatro, mas como território de disputa real de futuro.

Porque se continuarmos aceitando a política como performance, e o noticiário como ruído, alguém sempre vai se beneficiar do nosso cansaço.

______
Inglês:

🧠 Why We Can’t Bear to Follow the News Anymore

By Valéria Monteiro — Critical Point

We’re one year away from Brazil’s municipal elections, and yet what seems to dominate public sentiment is disconnection. People aren’t just losing interest in politics — they’re opting out of trying to understand what’s happening altogether.

The news cycle has begun to feel like a surrealist stage play, where dialogues make no sense, characters contradict themselves, and the plot takes wild turns by the hour. It’s not just disinformation — it’s cognitive exhaustion. So the pressing question is: why is this happening to us?



🌀 Information overload is a form of disinformation

In the age of hyperconnectivity, information alone isn’t enough. As behavioral psychologists Daniel Kahneman and Amos Tversky showed, the human brain struggles under overload. When bombarded with data and lacking clear connections, we fall back on mental shortcuts — trusting whatever aligns with our beliefs or what provokes the strongest emotion.

The fragmented, contradictory, and nonstop nature of today’s news confuses rather than clarifies. Instead of building a coherent mosaic of reality, it dissolves our capacity for comprehension. And when understanding demands too much effort, most people simply disengage.



🎭 Politics has become performance — and news, a spectacle

French philosopher Guy Debord warned in the 1960s that we were entering a “society of the spectacle”, where reality would be replaced by representation. Today’s political news proves him right: what we often see are public power performances, media-edited soundbites, staged gestures, and carefully scripted lines meant to go viral.

Politics is no longer a forum for ideas — it’s a continuous reality show. And like any show that overstays its welcome, it wears us out.



🧩 Political logic has been distorted

There’s something deeper at play too: a structural distortion of democratic logic. Not just in ethical failures or scandals, but in the collapse of representative systems themselves. Political scientists Bernard Manin and Pierre Rosanvallon have written about this crisis of legitimacy — the growing disconnect between institutions and the public they claim to represent.

Instead of rebuilding trust, the system doubles down on incoherence: backroom deals, ideological betrayals, and legal loopholes. Political news often feels irrational not because it’s badly reported, but because the system it covers has lost coherence.



📺 Surrealism is hard to follow

Many people now watch the news with the same uneasy confusion they feel watching a David Lynch film — that sensation of the familiar turned strange, the absurd rendered normal, and the grotesque made everyday.

This is not paranoia. It’s what philosopher Jean Baudrillard called simulacra — when the copy replaces the real. Politicians pose as “men of the people” after elite fundraisers; slogans like “freedom” justify censorship, and “morality” masks corruption.

Reality has been hijacked. What’s left is a blend of nervous laughter, cynical detachment, or total withdrawal.



🔒 Ignorance is now a political strategy

Most troubling of all, this confusion is not accidental — it’s deliberate. Historian Robert Proctor coined the term agnotology to describe the intentional manufacture of ignorance. Confusion, noise, and contradiction are political weapons — they disarm the public, leaving people unsure, doubtful, and ultimately passive.

A disoriented population doesn’t vote with clarity, doesn’t protest with conviction, doesn’t demand with confidence. In this way, strategic disinformation preserves power by paralyzing engagement.



🗳️ One year until elections — and no clear way forward

With municipal elections approaching, we urgently need to reclaim our ability to understand what’s happening. Not just to choose candidates, but to rebuild a public ethic, a sense of shared political responsibility.

This means pushing for a more responsible media, promoting critical education about information, and reconnecting with politics not as performance, but as the space where we define our collective future.

Because if we continue to accept politics as theater, and news as noise, someone will always profit from our exhaustion.

Valéria Monteiro.
Jornalista, fundadora do site valeriamonteiro.com.br
e ex-âncora da TV Globo e Bloomberg.

24 de out. de 2025

Leia Também

De quem é Nova York.

Entre despejos e arranha-céus, a eleição de Zohran Mamdani redefine a ideia de cidade — e desafia o capital global.

Um simples exame de sangue que pode detectar mais de 50 tipos de câncer.

Por Valéria Monteiro.

bottom of page