Quando a inocência vira audiência.
Por Valéria Monteiro.
Foto: Instagram Felca.
Do Show da Xuxa ao “Algoritmo P”, a exposição infantil foi naturalizada como entretenimento. O vídeo de Felca reacende o debate que a televisão abafou e que a sociedade precisa enfrentar sem silêncios nem disfarces.
Um vídeo de Felca, influenciador de Londrina, fez o Brasil encarar um tema que sempre existiu, mas raramente foi tratado com a gravidade devida: a adultização de crianças. Em seu documentário Adultização, publicado neste agosto, ele denunciou o que chamou de “Algoritmo P” — a engrenagem das redes sociais que, ao identificar interesse em vídeos infantis, passa a recomendar conteúdos semelhantes, muitos deles em situações exploradas por olhares predatórios. A repercussão foi imediata: milhões de visualizações, projetos de lei no Congresso, pedidos de CPI. O que era incômodo difuso virou pauta nacional.
Mas se hoje o debate explode pelas redes, é porque ontem ele foi simplesmente ignorado. Nos anos 80 e 90, o Show da Xuxa dominava a televisão brasileira, transmitindo diariamente a milhões de lares imagens que misturavam fantasia infantil e sensualidade em roupas, coreografias e gestos. O alcance da TV Globo, quase sem concorrência, era tão poderoso quanto os algoritmos atuais — e não havia ingenuidade no formato. O programa foi desenhado para manter pais e filhos diante da tela: para as crianças, o universo colorido; para os adultos, uma apresentadora jovem em trajes curtos e infantis, um fetiche disfarçado de entretenimento infantil. Assim, a televisão aculturava crianças e adultos enquanto silenciava críticas de modo “orgânico”, já que era produtora e guardiã da pauta pública.
E a Globo não estava sozinha. O sucesso do Show da Xuxa criou uma fórmula replicada por outras emissoras: a Manchete com o Clube da Criança, o SBT com o Show Maravilha e, mais tarde, o Bom Dia & Cia. Todas apostaram na mesma equação: apresentadoras jovens, figurinos chamativos e auditórios repletos de crianças. A diferença é que a Globo, com seu alcance hegemônico levava a sociedade brasileira uma cultura televisiva moldada na ambiguidade entre inocência e erotização, normalizada como diversão familiar.
O episódio dos Mamonas Assassinas no programa é um exemplo que reforça esse paradoxo. Em 1995, a banda se apresentou no Show da Xuxa com músicas recheadas de humor sexual, como Pelados em Santos e Vira-Vira, diante de um público infantil. O mesmo palco que prometia fantasia entregava erotização disfarçada de humor, sem qualquer filtro ou debate.
Fora do Brasil, já havia sinais de alerta. Em 1996, o assassinato de JonBenét Ramsey, de seis anos, chocou os Estados Unidos. Transformada em “mini-miss” por concursos de beleza infantil, JonBenét tornou-se símbolo dos riscos de glamourizar a infância. Sua morte brutal, jamais esclarecida, revelou ao mundo que o entretenimento baseado na exposição precoce não era inofensivo.
É aqui que o contraste se evidencia: uma criança brincar com a maquiagem da mãe é faz-de-conta; levá-la a um concurso é cobrança e exposição. O primeiro é lúdico; o segundo, julgamento e consumo. Essa fronteira borrada continua a nos perseguir, apenas com novos palcos e mais velocidade.
O Algoritmo P, hoje, apenas multiplica essa lógica. O que mudou não é a essência, mas a escala, a velocidade e a ausência de filtros. A exploração que antes estava concentrada na televisão agora se pulveriza em milhões de telas. E o mais grave: em vez de termos aprendido com o passado, seguimos normalizando, apenas em novas plataformas.
Na minha infância, nadar de calcinha era comum, um gesto simples, livre de malícia. O corpo era apenas corpo, frágil e ingênuo. O que mudou não foi a criança, mas o olhar externo — que passou a transformar inocência em objeto.
A infância deveria ser vivida como um anjo — imagem recorrente da tradição cultural, alada, inocente, assexuada. Quando uma criança precisa pensar em proteger o próprio corpo, não é sinal de maturidade: é a prova de que nós, adultos, falhamos.
Essa percepção já estava intuída em Oswald de Andrade, no Manifesto Antropófago (1928):
“Quando o português chegou / Debaixo duma bruta chuva / Vestiu o índio. / Que pena! / Fosse uma manhã de sol / O índio tinha despido / O português.”
A nudez original nunca foi problema. Povos originários sempre viveram nus sem que isso significasse erotização. O problema está no olhar que força e distorce. A mesma distorção que hoje censura fotografias de Sebastião Salgado mostrando povos indígenas, mas permite que algoritmos entreguem vídeos de crianças a quem busca explorá-las.
O caso Felca é uma oportunidade de corrigir omissões históricas. Não é descobrir algo novo, mas discutir o que sempre esteve diante de nós. Cabe à sociedade estar atenta, engajada e pronta para agir em cada época. A infância não pode ser esquecida nunca.

Valéria Monteiro.
Jornalista, fundadora do site valeriamonteiro.com.br
e ex-âncora da TV Globo e Bloomberg.
21 de ago. de 2025

Leia Também
De quem é Nova York.
Entre despejos e arranha-céus, a eleição de Zohran Mamdani redefine a ideia de cidade — e desafia o capital global.

