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Quando a palavra mente:

Retórica, narrativa e o retorno dos sofistas.

Quando a palavra mente:

Você já parou para se perguntar o que, de fato, significa uma palavra?
Por que alguns termos ganham tanto poder a ponto de esconder a própria realidade que deveriam revelar?

Palavras não são neutras. Elas constroem, escondem, disfarçam.
Nos tempos atuais, há uma em especial que se transformou em código, em escudo, em desculpa: “narrativa”.

Tudo virou narrativa — a justiça, os fatos, as mentiras, até as intenções.
Mas será que ao chamar tudo de narrativa não estaríamos, sem perceber, renunciando à busca por algo mais sólido — como a verdade?
Se tudo é uma versão, como se reconhece um engano? Como se denuncia uma injustiça?

Talvez por isso, recentemente, observamos um movimento curioso: veículos de comunicação e analistas voltaram a usar uma palavra mais antiga, mais densa — “retórica”.
Mas por quê?
O que há na retórica que a torna mais apropriada para descrever os discursos que nos cercam?

A resposta pode estar no próprio sentido original da palavra.
A retórica, desde a Grécia Antiga, é a arte de convencer.
Mas… convencer a quem? E com qual finalidade?

Os sofistas foram os primeiros a dominar essa arte. Ensinavam a argumentar com elegância, mesmo quando não se tinha razão.
Será que isso não lembra algo que vemos todos os dias?
Discursos inflamados, mas ocos? Frases de efeito, mas nenhuma escuta real?

Sócrates desconfiava disso. Ele não discursava. Perguntava.
Dizia que o verdadeiro saber começa quando reconhecemos o que não sabemos.
Será que ainda somos capazes de reconhecer nossa ignorância?
Ou já fomos convencidos de que saber gritar é o mesmo que saber pensar?

Hoje, a retórica retornou. Mas de mãos dadas com o espetáculo.
A política virou performance. A verdade, disputa.
E o que antes era reflexão, virou slogan.

Não é curioso que um ex-presidente, ao ser confrontado por ter acusado falsamente ministros do Supremo, tenha se defendido dizendo que era “só retórica”?
Não seria essa admissão, em si, uma revelação do método?
A mentira estratégica. A fala como ferramenta de manipulação.

Mas será que isso só acontece lá em cima, no poder?
Ou será que também nos atravessa de maneira mais íntima?

Eu mesma vivi isso na minha casa.
Meu pai era um homem culto. Sabia citar autores.
Mas usava as palavras para justificar o injustificável.
Citou Paulo Freire para relativizar seu próprio autoritarismo.
Usava a linguagem da liberdade para camuflar a opressão.
E isso me ensinou algo que nenhum livro havia dito até então:
o discurso também pode ser uma forma de violência.

Será que todos os discursos que se dizem libertadores, são?
Será que toda fala bem articulada é, de fato, honesta?

Hoje, muitos falam em liberdade de expressão.
Mas liberdade para quem? Para dizer o quê? Sem limite algum?
Liberdade de expressão ou permissão para atacar, mentir, desumanizar?

Não é contraditório que tantos que clamam por liberdade sejam os mesmos que querem silenciar professores, artistas, jornalistas?

Talvez esteja na hora de voltarmos à raiz.
De voltarmos a perguntar.
De parar de repetir — e começar a refletir.

Este editorial não traz respostas prontas.
Traz perguntas urgentes.

O que estamos dizendo quando falamos?
A quem servem as palavras que usamos?
Como distinguir verdade de truque, escuta de domínio, diálogo de manipulação?

Porque sem verdade, há apenas versões.
Sem justiça, há apenas ruídos.
Sem liberdade, há apenas gritos.

E o grito autoritário disfarçado de argumento é o som mais perigoso de todos.

Mas… será que é só isso que nos resta?

Ou ainda podemos escolher outro caminho?

Podemos escolher a palavra que constrói, a que ilumina, a que escuta.
A que ousa dizer a verdade mesmo quando ela não convém.

Se a mentira grita, que a verdade insista.
Porque ainda há espaço — e urgência — para uma palavra que não mente.

Valéria Monteiro.
Jornalista, fundadora do site valeriamonteiro.com.br
e ex-âncora da TV Globo e Bloomberg.

11 de jul. de 2025

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