top of page

Quando a política vira novela, quem perde somos nós.

Por Valéria Monteiro.

Quando a política vira novela, quem perde somos nós.

Em tempos em que o jornalismo luta — com esforço diário — para recuperar imparcialidade, credibilidade e método, casos como o da BBC e Donald Trump ganham um peso simbólico que ultrapassa a simples “falha editorial”.
Quando um dos veículos mais respeitados do mundo erra, se corrige, mas abre espaço para ameaças bilionárias e desinformação organizada, o dano não se limita ao episódio. Ele corrói um alicerce vital: a confiança pública na própria ideia de jornalismo responsável.

E é nesse cenário frágil que assistimos no Brasil a uma prática ainda mais sutil, porém igualmente corrosiva.

Outro dia, a tarja do noticiário anunciou:
“Moraes dá 5 dias para a PGR se manifestar.”

Quem conhece o processo sabe que o prazo não é um gesto pessoal — é um procedimento previsto em lei, comum, burocrático, esperado.
Mas é apresentado como se fosse uma decisão voluntária, um ato de autoridade individual, quase um movimento dramático de personagem no capítulo do dia.

É aí que começa o problema.



🧠 Quando tudo vira personagem — e não instituição — quem perde é o público

Nas últimas décadas, o Brasil passou a operar dentro de uma lógica curiosa: cada área parece ter um único gênio, um único rosto, um único representante máximo, como se o país funcionasse por realeza simbólica.

A propaganda tem “o gênio da propaganda”.
O direito tem “o advogado celebridade”.
O Judiciário tem “o ministro da vez”.
O teatro tem “a grande dama”.
O jornalismo tem “a voz definitiva”.
A ciência tem “o cientista que representa a ciência”.

E assim sucessivamente — um trono de cada vez.

Essa lógica reduz a complexidade de cada campo a um único nome, que vira ícone, soberano, filtro de opinião, polo de admiração ou ódio.

O cálculo é simples:
• quando a política vira novela,
• os ministros viram personagens,
• os juristas viram arquétipos,
• os cientistas viram oráculos,
• e o jornalismo vira palco para performances individuais,

…quem perde é a sociedade inteira.

Perdemos a visão de conjunto.
Perdemos o entendimento sobre instituições.
Perdemos senso crítico.
Perdemos a capacidade de discernir entre o ato funcional e o ato político.
Perdemos a noção de que decisões são processos, não gestos do personagem do dia.

Perdemos, sobretudo, a perspectiva democrática.



📉 Porque uma democracia que pensa em indivíduos não pensa em sistemas

Quando tudo se personaliza, tudo se simplifica — e tudo se distorce.

A opinião pública deixa de debater:
• políticas públicas,
• estruturas,
• funcionamento do Estado,
• responsabilidades institucionais,
• impactos sociais,
• efeitos econômicos,
• limites legais,
• e o próprio papel da imprensa.

E passa a discutir temperamentos, manchetes, rostos, gestos, entonações, rivalidades pessoais.

É entretenimento.
Mas não é cidadania.

E a consequência é inevitável:
• menos democracia,
• menos maturidade pública,
• menos compreensão,
• mais torcida,
• mais polarização,
• mais fragilidade institucional,
• mais espaço para manipulação
— e para erro.



🔍 O jornalismo entra justamente aí — e a BBC é um alerta global

Se até os veículos mais rigorosos do mundo podem falhar, a confiança passa a depender de algo ainda maior do que procedimentos técnicos: depende de cultura crítica.

Depende de ensinar o público a diferenciar:
• erro jornalístico
de
• desinformação proposital;
• decisão institucional
de
• macrodrama personalizado;
• processo
de
• personagem.

Quando não ensinamos isso, entregamos a arena pública às narrativas simplificadas, inflamadas e profundamente sedutoras — porque reduzem a política à escala das emoções humanas, às paixões e antipassões que as redes sociais amplificam.



🧭 E voltamos à pergunta central: quem perde com isso?

Não é a BBC.
Não é o ministro da tarja.
Não é o jornal.
Não é o advogado, o cientista, o economista ou o “gênio do setor”.

Quem perde é o cidadão.
Quem perde é o debate público.
Quem perde é a democracia.
Perde-se a capacidade de pensar o Brasil além dos personagens que mandamos ao palco.

Enquanto formos guiados por manchetes que parecem chamadas de novela, e não por compreensão institucional, seguiremos alimentando um país de heróis e vilões — não de cidadãos conscientes e instituições sólidas.



🇬🇧 ENGLISH VERSION

When Politics Turns Into a Soap Opera, We All Lose

In times when journalism struggles — daily — to rebuild impartiality, credibility and method, episodes like the one involving the BBC and Donald Trump gain symbolic weight far beyond a simple editorial mistake.
When one of the world’s most respected news organizations errs, corrects itself, but opens space for billion-dollar threats and organized disinformation, the damage is not confined to the episode. It corrodes something vital: public trust in the very idea of responsible journalism.

And it is in this fragile environment that we watch, in Brazil, a subtler but equally corrosive practice take shape.

The other day, the news banner read:
“Moraes gives the Prosecutor General’s Office 5 days to respond.”

Anyone familiar with the process knows the deadline is not a personal gesture — it is a legal, routine, procedural step.
Yet it is presented as if it were a voluntary decision, an individualized act of authority, almost a dramatic move by a character in the chapter of the day.

And that is where the problem begins.



🧠 When everything becomes a character — and not an institution — the public loses

For decades, Brazil has operated under a curious logic: each field seems to have one genius, one face, one supreme representative, as if the country functioned through symbolic monarchy.

Advertising has “the genius of advertising.”
Law has “the celebrity lawyer.”
The judiciary has “the minister of the moment.”
The arts have “the grand dame.”
Journalism has “the definitive voice.”
Science has “the scientist who represents all science.”

And so on — one throne at a time.

This logic reduces the complexity of each field to a single name, who becomes icon, sovereign, filter of opinion, object of admiration or hatred.

And the equation is simple:
• when politics becomes a soap opera,
• ministers become characters,
• jurists become archetypes,
• scientists become oracles,
• and journalism becomes a stage for individual performances,

…society as a whole loses.

We lose our sense of structure.
We lose institutional understanding.
We lose critical judgment.
We lose the ability to distinguish between procedural acts and political gestures.
We lose sight of the fact that decisions are processes, not plot twists delivered by the character of the day.

Above all, we lose democratic perspective.



📉 A democracy that thinks in individuals cannot think in systems

When everything is personalized, everything is simplified — and everything is distorted.

Public debate stops engaging with:
• public policy,
• structures,
• the functioning of the State,
• institutional responsibilities,
• social impact,
• economic consequences,
• legal constraints,
• and the role of the press.

And starts focusing on personalities, headlines, tones of voice, body language, rivalries.

It is entertainment.
But it is not citizenship.

And the consequences are inevitable:
• weaker democracy,
• reduced public maturity,
• less understanding,
• more tribalism,
• more polarization,
• more institutional fragility,
• more room for manipulation
— and for error.



🔍 This is where journalism enters — and the BBC serves as a global warning

If even the most rigorous outlets can fail, credibility depends on something beyond technical procedures: it depends on critical culture.

It depends on teaching the public to differentiate:
• journalistic error
from
• intentional disinformation;
• institutional decisions
from
• personalized melodrama;
• process
from
• character.

When this distinction is lost, the public arena is handed over to simplified, emotionally charged narratives — the ones that reduce politics to human passion and keep social networks burning.



🧭 So who loses?

Not the BBC.
Not the minister featured in the banner.
Not the newspaper.
Not the lawyer, the scientist, the economist or the “genius of the sector.”

The ones who lose are the citizens.
The public debate.
The democratic fabric.

We lose our ability to think Brazil beyond the characters we place on the stage.

As long as we are guided by headlines that feel like scenes from a soap opera — instead of institutional understanding — we will continue to feed a country of heroes and villains, not informed citizens and solid institutions.

Valéria Monteiro.
Jornalista, fundadora do site valeriamonteiro.com.br
e ex-âncora da TV Globo e Bloomberg.

14 de nov. de 2025

Leia Também

De quem é Nova York.

Entre despejos e arranha-céus, a eleição de Zohran Mamdani redefine a ideia de cidade — e desafia o capital global.

Interfaces Cérebro–Computador.

O que a pesquisa cerebral realmente significa para a tecnologia movida pelo pensamento.

bottom of page