top of page

Quando o poder vira violência.

Por Valéria Monteiro.

Quando o poder vira violência.

O recorde de feminicídios em São Paulo revela mais do que um número — expõe a cultura da dominação e a violência autorizada pelo poder.

(Scroll down for English)

A capital de São Paulo bateu recentemente um recorde que deveria envergonhar qualquer sociedade que se pretenda moderna: o maior número de feminicídios já registrados. Esse número não é apenas estatística — é luto, é ruptura de vidas, é a falência de um pacto civilizatório básico. Mas é também sintoma de algo ainda mais profundo: a normalização da violência como ferramenta de controle por parte de quem detém mais força, mais dinheiro, mais influência ou, simplesmente, mais espaço social para impor sua vontade.

O feminicídio não é um fenômeno isolado — é o ápice de uma cadeia contínua de agressões que se alimenta da desigualdade. Manifesta-se no gênero, sim, mas repete-se em dinâmicas de classe, raça, idade e em todas as relações de hierarquia que estruturam o Brasil. Quando um homem mata uma mulher “por ser mulher”, reafirma um modelo de poder que aceita a violência como idioma legítimo para resolver conflitos e frustrações.

Essa lógica está no empregador que humilha a trabalhadora doméstica, no policial que agride o jovem periférico, no político que usa o cargo para silenciar críticos, no empresário que destrói vidas em nome do lucro. Está nos lares, nas ruas, nas instituições. O feminicídio é o iceberg visível — abaixo dele, uma cultura inteira autoriza o mais forte a esmagar quem tem menos.

Nada disso é inevitável. Violência não é destino; é construção social. É produzida pela conivência, pela piada repetida, pela “vista grossa”, pela ausência de políticas públicas, pela falta de responsabilização real. Cresce quando o Estado se retrai, quando a sociedade naturaliza agressões “menores”, quando a escola evita confrontar desigualdades, quando homens são educados para a dominação, não para o cuidado.

Combater o feminicídio sem enfrentar a cultura do poder desigual é apenas limpar o sangue depois que ele escorre. Não basta multiplicar delegacias se denúncias continuam voltando para casa com a vítima. Não basta endurecer penas se o agressor é tratado como “um bom rapaz que perdeu a cabeça”. A mudança real exige deslocamento de poder: homens responsáveis, Estado protetor, educação transformadora, mídia que ilumine as estruturas — não apenas os crimes.

O recorde de feminicídios em São Paulo é um grito. Um alerta de que estamos permitindo que a violência se torne método e hábito. Mas ainda há escolha. E ela começa por reconhecer a raiz comum dessas agressões: uma cultura que transforma poder em permissão para ferir. Nada disso é inexorável. Violência nasce permitida — e o que é permitido pode, e deve, ser interrompido.


——————

Inglês:
When Power Turns Into Violence

Subtítulo (EN): São Paulo’s record number of femicides reveals more than a statistic — it exposes a culture of domination and violence sanctioned by power.

The city of São Paulo has recently reached a record that should shame any society that claims to be modern: the highest number of femicides ever recorded. That figure is not just a statistic — it is mourning, shattered lives, and the collapse of a basic civilizational pact. But it is also a symptom of something even deeper: the normalization of violence as a tool of control by those who hold more strength, more money, more influence, or simply more social room to impose their will.

Femicides are not isolated incidents — they are the peak of a continuous chain of aggressions fueled by inequality. This violence appears in gender dynamics, yes, but also repeats itself across class, race, age, and every hierarchical relation that structures Brazil. When a man kills a woman because she is a woman, he reinforces a model of power that treats violence as a legitimate language for resolving conflicts and frustrations.

This logic is present in the employer who humiliates a domestic worker, the police officer who assaults a young person from the outskirts, the politician who uses office to silence critics, the businessman who wrecks lives in the name of profit. It is present in homes, in streets, in institutions. Femicides are the visible iceberg — beneath them lies an entire culture that authorizes the powerful to crush the powerless.

None of this is inevitable. Violence is not fate; it is a social construction. It grows through complicity, repeated jokes, “looking the other way,” the absence of public policies, and the lack of real accountability. It spreads when the State retreats, when society normalizes “small” aggressions, when schools avoid confronting inequality, when men are raised for domination rather than care.

Fighting femicides without confronting the culture of unequal power is merely wiping away blood after it has spilled. It is not enough to multiply police stations if reports still return home with the victim. It is not enough to increase penalties if the aggressor is treated as “a good guy who lost control.” Real change demands a shift in power: men taking responsibility, a protective State, transformative education, and media that illuminate structures — not just crimes.

São Paulo’s femicide record is a scream. A warning that we are allowing violence to become method and habit. But there is still a choice. And it begins by recognizing the common root of all these aggressions: a culture that turns power into permission to harm. None of this is inexorable. Violence is born from permission — and what is permitted can, and must, be stopped.

Valéria Monteiro.
Jornalista, fundadora do site valeriamonteiro.com.br
e ex-âncora da TV Globo e Bloomberg.

9 de dez. de 2025

Leia Também

Eugenia 2.0.

A política da exclusão muda de linguagem, não de propósito.

Interfaces Cérebro–Computador.

O que a pesquisa cerebral realmente significa para a tecnologia movida pelo pensamento.

Comentários
Avaliado com 0 de 5 estrelas.
Ainda sem avaliações

Adicionar avaliação
Compartilhe sua opiniãoSeja o primeiro a escrever um comentário.
bottom of page