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O Conto da Aia:

O Conto da Aia:

Quando a distopia atravessa a tela e pega você pelo pescoço.

Dirigido por Volker Schlöndorff.

16 anos.

Assistir a The Handmaid’s Tale (O Conto da Aia) é uma experiência que exige mais do que atenção. Exige estômago, coragem e fôlego emocional. A série, baseada no livro de Margaret Atwood, deixa de ser apenas ficção distópica e se instala perigosamente perto do que já foi — e ainda é — realidade em muitos cantos do mundo. Às vezes, parece mais crônica do jornal da noite do que roteiro de uma obra de TV.

A violência não é ilustrada. É vivida.

As duas primeiras temporadas são um mergulho profundo no horror institucionalizado. A violência em O Conto da Aia não é pontual — é estrutural, constante e coreografada como um ritual do medo. A câmera não desvia. Não há alívio, não há respiro. É como se a série dissesse: “Se elas não podem fugir, você também não.”

Você sente. A violência atravessa a tela. Dá a impressão de que pode alcançá-la do outro lado, como um vapor tóxico que escapa do monitor. A dor não é sugerida — é imposta. Os estupros ritualizados, os castigos públicos, a mutilação de corpos femininos em nome da moral e da religião: tudo é exposto com frieza. E é justamente essa frieza que queima.

Essa é uma das raras obras audiovisuais em que o desconforto não é efeito colateral — é ferramenta narrativa. E isso muda tudo.

Trilha e fotografia: quando a arte não adorna, tensiona

A estética da série é de um rigor emocional quase cruel. A trilha sonora não acompanha — impulsiona. Ela embala, sim, mas como quem te empurra para o abismo. De repente, Nina Simone canta no meio de uma cena silenciosa de tortura. Ou Kate Bush entra como um sussurro de liberdade possível. Cada música parece escolhida para cutucar uma parte do cérebro que ainda se recusava a reagir.

Já a fotografia é um espetáculo à parte — ou melhor, um sintoma visual da repressão. As cores são frias, doentias. Você sente na pele a temperatura do cenário: o azul esmaecido das esposas, o verde séptico das paredes, a ausência de sol. Tudo parece feito para lembrar que vida, ali, é exceção.

E então, o vermelho.

O vermelho das aias não é simbólico: é visceral. Não representa apenas fertilidade ou sangue. Representa raiva, pulsação, rebelião, urgência. Representa tudo aquilo que o sistema tenta calar. É o tom da paixão que a injustiça provoca no nosso sistema nervoso. O vermelho não está ali para destacar personagens — está ali para dizer que elas ainda estão vivas, mesmo sob controle total.

June não é heroína. É sobrevivente.

A protagonista, June/Offred, interpretada por Elisabeth Moss, não é feita para ser admirada — é feita para ser compreendida. E isso nem sempre é confortável. Ela é contraditória, explosiva, instintiva. Age com raiva, com desespero, com cálculo. E tudo isso é profundamente humano.

June não está lá para perdoar. Está lá para resistir. Para se transformar. Para tentar sobreviver sem deixar que apaguem quem ela foi. E isso exige muito mais do que coragem — exige lucidez num mundo que premia o apagamento feminino como virtude.

A temporada final: justiça não é paz. É continuidade.

Nos episódios finais da última temporada, a série abandona qualquer ilusão de final feliz. Gilead não é um lugar do qual se escapa com um plano engenhoso e uma música triunfante. Gilead é um sistema que se espalha como fungo, mesmo quando cai. A série sabe disso. Por isso, o tom da despedida não é apoteótico — é agridoce, político, lúcido.

June não encontra redenção. Mas encontra propósito. O fim não é alívio. É escolha. Escolher lembrar, escolher lutar, escolher proteger o futuro — mesmo sem garantias.

A última cena, longe de encerrar, abre uma pergunta inquietante: o que fazemos quando o mal perde o poder, mas não perde o discurso? O que fazemos quando a paz ameaça virar esquecimento?



Vale a pena assistir?

Se você espera conforto, não. Se espera entretenimento rápido, também não. Mas se você quer uma obra que cutuca sua consciência, testa seu limite emocional e te lembra que liberdade nunca foi garantida — sempre foi luta — então O Conto da Aia é essencial.

Assista como quem lê um aviso. Porque é isso que a série é.

Valéria Monteiro.
Jornalista, fundadora do site valeriamonteiro.com.br
e ex-âncora da TV Globo e Bloomberg.
6 de jun. de 2025

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