Quando Uma Obra-Prima Perde:

Emilia Pérez, Anora e os Paradigmas em Jogo.
Direção: Jacques Audiard | Roteiro Jacques Audiard.
16 Anos.
Nem sempre a Palma de Ouro vai para o melhor filme. Às vezes, vai para o mais simbólico. Outras, para o
mais seguro. Em 2025, Anora, de Sean Baker, venceu Cannes - e deixou para trás Emilia Pérez, de Jacques
Audiard, uma obra que muitos já chamavam de "clássico instantâneo". Ovacionado por mais de dez minutos,
premiado em quatro categorias, mas sem a estatueta principal, o filme latino-musical transgressor saiu
ovacionado - mas, paradoxalmente, também esvaziado.
Um mistério? Talvez. Ou talvez um retrato fiel do tempo em que vivemos: um cinema que oscila entre
ousadia estética, discursos identitários e um desejo crescente por neutralidade moral.
Emilia Pérez é um musical noir, falado em espanhol, dirigido por um francês, protagonizado por uma atriz
pop americana, uma estrela latina e uma mulher trans espanhola. Uma advogada, um narcotraficante em
transição de gênero, e uma trama de redenção que flerta com o melodrama, a ópera e o thriller político.
Tudo junto, tudo ao mesmo tempo.
Uma obra grandiosa, híbrida, difícil de categorizar. Ou, talvez, justamente por isso, fácil de rejeitar. Seu
protagonismo queer, sua estética vibrante e sua estrutura fora das convenções foram lidas como um gesto
audacioso demais em um festival que, apesar da fama, ainda hesita diante do novo quando ele vem
embalado em excesso.
Enquanto isso, Anora - um retrato realista e contido de uma stripper do Brooklyn que se envolve com o filho
de um oligarca russo - foi a escolha do júri. Um filme correto, eficiente, comovente em seu minimalismo. Um
cinema de câmera na mão, naturalismo, simplicidade narrativa. Menos exuberância, mais controle. E, talvez,
mais segurança.
Mas o destino de Emilia Pérez não foi selado só em Cannes. Até então, era considerada uma forte candidata
ao Oscar. Tudo mudou quando começaram a circular críticas nos bastidores: questionamentos sobre o uso
de inteligência artificial em algumas cenas, escolhas de elenco vistas como "polêmicas", e declarações do
diretor que geraram desconforto. Não houve escândalo, nem acusações graves - mas foi o suficiente para a
Academia reagir com cautela.
Curiosamente, a história recente da própria Academia é marcada por diretores e artistas premiados mesmo
sob denúncias sérias - casos muito mais delicados que o de Audiard. A diferença agora parece estar na
pressão por uma imagem mais "limpa", mais consciente, mais alinhada com a era pós-MeToo e com as
exigências das redes sociais. O novo moralismo hollywoodiano não perdoa nuances - e, em alguns casos,
não distingue intenção de contexto.
Nesse contexto, é impossível não lembrar de Ficção Americana (American Fiction), vencedor do Oscar de
Melhor Roteiro Adaptado em 2024. Um filme brilhante, mas discreto. Quase silencioso. Uma crítica sutil à
forma como o mercado trata narrativas negras - feita sem gritos, sem estética provocadora, sem levantar
bandeiras ostensivas. Foi premiado justamente por isso: por navegar o discurso sem gerar desconforto.
Emilia Pérez, ao contrário, incomoda. Celebra. Exagera. É latina, queer, colorida, híbrida. E talvez por isso
tenha se tornado um alvo fácil. Um filme que desafia os padrões enquanto ainda tenta ser amado por eles.
A pergunta que fica é simples, mas inquietante: estamos premiando o que é bom ou o que é confortável?
Estamos reconhecendo o talento ou medindo o impacto de acordo com o clima político do momento?
A arte não é imune ao contexto. Mas quando ela começa a ser avaliada mais pelos bastidores do que pela
tela, mais pela biografia de seus criadores do que pela força da obra, algo se perde. E talvez 2025 seja
lembrado como o ano em que Emilia Pérez brilhou alto demais para os olhos cautelosos da indústria.
No fim, Emilia Pérez não perdeu. Cannes hesitou. E o Oscar, como sempre, vacilou entre estética e
estratégia. Mas os filmes ficam. E os paradigmas - esses estão, talvez, só começando a mudar.

Valéria Monteiro.
Jornalista, fundadora do site valeriamonteiro.com.br
e ex-âncora da TV Globo e Bloomberg.
25 de mai. de 2025
Leia Também

IA e Música:
Por que uma faixa country sem músicos marca um novo tempo.
