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“Ninguém tira minha dança.”

Paulo Baía.
Sociólogo, cientista político e professor da UFRJ.

24 de mai. de 2025

“Ninguém tira minha dança.” É uma frase lançada ao mundo como uma flecha acesa, que atravessa as noites escuras e acende corpos cansados. Ninguém sabe quem a escreveu. Não há nome, data, local. Apenas o eco. Apenas o sopro que reverbera onde há luta. Essa frase não tem dono porque é filha do vento, do tambor, da lágrima contida. Nasceu do chão quente das periferias, dos pés descalços da dignidade, dos olhos que aprenderam a não baixar a cabeça. Não é citação: é testemunho. É como se o povo escrevesse com o corpo aquilo que a caneta jamais ousou escrever.

A dança que ninguém tira é o gesto último de quem já perdeu quase tudo — menos a alma. É o movimento que insiste, mesmo quando o mundo inteiro diz para parar. Quando tiram o nome, o direito, a terra, a escola, o filho, o lar — resta a dança. E ela explode do corpo como um trovão doce. É uma menina negra girando com seu vestido em praça pública, como se a liberdade morasse ali, entre a roda do tecido e o chão sujo da cidade. É o idoso que dança com a memória da juventude nas pernas. É o corpo deficiente que se move para dizer: eu também estou aqui. Eu sou.

E é político. Porque não há nada mais ofensivo à ordem do que um corpo feliz sem permissão. Um corpo que se move, mesmo quando querem que ele rasteje. Um corpo que não pede desculpas por existir. A dança é insubordinação. É a recusa em obedecer ao ritmo da opressão. É o compasso do que é nosso, sem precisar autorização. Dançar é responder aos gritos com silêncio em movimento. É incendiar os salões do poder com passos vindos da rua. É abrir brechas no concreto com a sola dos pés. É dizer: não adianta me prender, eu já escapei no primeiro giro.

A frase, pequena como um sussurro e grande como uma revolução, traz em si a história inteira dos que não se ajoelharam. Os que dançaram escondidos, perseguidos, esquecidos. Os que rodaram no escuro, de olhos fechados, acreditando que o mundo pode ser mais bonito se os pés estiverem em sintonia com o coração. É uma frase que não se escreve com tinta, mas com corpo. Ela circula porque é necessária. Porque ainda há quem tente nos reduzir a números, siglas, fardas, ausências. E a dança resiste: é o poema que se move. O grito que não precisa de garganta.

Há algo profundamente sagrado nesse passo que ninguém pode arrancar. É herança dos que vieram antes, promessa para os que virão depois. A dança que ninguém tira é também reza, recomeço, renascimento. É o orvalho que insiste mesmo depois da seca. É o carnaval em meio ao luto. É o abraço onde não há palavras. E por mais que tentem silenciar os batuques, por mais que risquem da pauta o nome dos poetas do asfalto, por mais que finjam que os dançantes não existem — eles seguem. Girando. Cantando com o corpo. Escrevendo com os joelhos. A cada giro, desobedecem.

E nessa madrugada insone que nos atravessa, há uma cidade que desperta antes do sol. Uma multidão se forma como quem se reconhece no escuro, sem palavras. Pessoas descem das janelas, saem das vielas, se juntam sem convocação e dançam. Dançam para esquecer, dançam para lembrar, dançam para não enlouquecer. Dançam como quem planta alguma esperança no cimento. São milhares, juntos, como se o corpo de cada um completasse o do outro, como se cada passo dissesse: você não está sozinho. E ali, naquela dança solidária, emerge algo que vai além da beleza: emerge a reinvenção da vida. Porque dançar, quando tudo parece ruir, é nascer de novo. É transformar o que sobra em semente. É abrir o futuro com os pés.

E por isso seguimos. Por isso dançamos. Porque há em nós algo que nenhum decreto pode deter. Algo que não se dobra, não se cala, não se rende. A dança que ninguém tira é o anúncio de que ainda estamos vivos — e mais: que ainda somos belos. Que ainda somos capazes de fazer do corpo bandeira, da rua palco, do sofrimento resistência. É a dança que salva. Que cura. Que vinga. Que transforma o chão duro em chão fértil. E se o mundo tentar apagar, esconder, calar — que tente. Porque já dançamos o suficiente para saber: ninguém tira o que pulsa. Ninguém tira nossa dança. Nunca. E quando dançamos juntos, solidários, madrugada adentro, sob o céu da cidade que ainda vai amanhecer, dançamos também por todos os que não puderam estar ali — e, dançando, os fazemos eternos.

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