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Prosperar no Brasil: mérito ou ponto de partida?

O que realmente determina quem avança e quem fica para trás numa sociedade marcada por desigualdades históricas.

Prosperar no Brasil: mérito ou ponto de partida?
Foto: Site Câmara dos Deputados.

Introdução

Vivemos um momento em que o debate público, tomado por discursos inflamados e binarismos artificiais, tem sido dominado por slogans e simplificações. Em meio a esse ruído, ressurge com força a velha ideia de que atacar privilégios econômicos seria atacar a economia como um todo — uma falácia que se disfarça de defesa dos empregos, mas que, na prática, serve apenas à manutenção das desigualdades.



O argumento de Nikolas Ferreira

O deputado Nikolas Ferreira, expoente do populismo conservador brasileiro, tem se notabilizado por mobilizar esse tipo de retórica. Num vídeo recente que ultrapassou 10 milhões de visualizações, ele reagiu à proposta do governo de tributar os super-ricos dizendo:

“Essas pessoas saindo do Brasil […], menos empregos. Aí você tem falta de investimentos, falta de arrecadação.”

A lógica é simples: os grandes detentores de capital seriam indispensáveis à geração de emprego, e qualquer tentativa de redistribuição comprometeria o desenvolvimento nacional. É um argumento eficiente do ponto de vista comunicacional, pois dialoga com temores legítimos da população. Mas também é profundamente enganoso.



O mito do capital como motor exclusivo

Essa narrativa tem raízes na doutrina neoliberal, que prega o Estado mínimo, a primazia do capital privado e o “trickle-down economics” — a ideia de que o enriquecimento dos de cima, por meio da liberdade de acumular, acabará beneficiando os de baixo.

Na prática, o que se viu nas últimas décadas foi o contrário: mais concentração de renda, precarização do trabalho e fragilidade social.

Hoje, essa retórica é ainda mais anacrônica diante da realidade do século XXI. A automação e a inteligência artificial tornam cada vez mais possível o lucro sem geração proporcional de empregos. A relação entre capital acumulado e bem-estar coletivo foi rompida por um modelo que privilegia eficiência financeira acima de qualquer compromisso com o social.



Os verdadeiros motores do emprego no Brasil

Mesmo no plano empírico, o argumento de Nikolas não se sustenta. Quem realmente impulsiona a geração de empregos no Brasil são as micro e pequenas empresas (MPEs).

Segundo dados do Sebrae:
• Mais de 70% das vagas formais em 2024 foram criadas por esse segmento.
• No primeiro trimestre de 2025, foram abertos mais de 1,4 milhão de novos negócios, dos quais 78% são MEIs.

São esses empreendedores de base, geralmente ignorados pelas políticas públicas e sem acesso aos grandes mecanismos de crédito, que sustentam a economia real.



O erro do discurso oficial

Mas é importante reconhecer também que a retórica do próprio governo federal contribui para a legitimação desse tipo de reação da direita. A oposição entre “ricos e pobres” como base do discurso público, embora fundada em uma realidade estatística de desigualdade extrema, pode se tornar contraproducente quando apresentada de forma simplista e polarizadora.

Ao comunicar a necessidade de justiça tributária como um embate entre classes, o governo abre espaço para distorções. Em vez de apresentar a taxação dos super-ricos como uma medida técnica e necessária, baseada em evidências internacionais, escorrega para um tom moralista que facilita reações como a de Nikolas — que se apropriam da narrativa de “divisão do povo” para defender o status quo.



O papel da herança na desigualdade

A verdade é que o debate sobre prosperidade precisa ser reposicionado. Como mostra o economista Thomas Piketty em O Capital no Século XXI, a principal variável de ascensão social hoje não é o esforço individual, mas a herança. Ele afirma:

“Quando a taxa de retorno sobre o capital é maior que a taxa de crescimento econômico, o resultado é a concentração de riqueza e o enfraquecimento da mobilidade social.”

Essa constatação desafia o mito da meritocracia, usado para justificar desigualdades extremas. A crença de que basta “trabalhar duro” para vencer ignora o papel estrutural do nascimento, do acesso à educação de qualidade, à saúde, à moradia e, principalmente, ao capital herdado.



A armadilha da polarização

No campo político, o cenário se agrava com o avanço de uma lógica binária e emocional:
• A direita acusa o Judiciário de ser “inimigo do povo”.
• A **esquerda retruca dizendo que o Congresso sabota os interesses populares”.

Ambas simplificam demais a complexidade institucional brasileira. Em vez de promover diálogo e reformas estruturais, alimentam desconfiança e radicalização.



Conclusão

Não se trata de negar a importância do mérito, nem de deslegitimar o empreendedorismo — especialmente o de base. Mas é preciso afirmar com clareza que não estamos todos no mesmo ponto de partida, e que a promessa de prosperidade individual num sistema profundamente desigual não pode ser o centro do projeto político nacional.

A justiça social começa com a verdade.
E a verdade é que algumas poucas famílias controlam a maior parte da riqueza nacional enquanto milhões de brasileiros lutam apenas para sobreviver.
Enxergar isso não é incitar o conflito.
É o primeiro passo para construir soluções reais.

Valéria Monteiro.
Jornalista, fundadora do site valeriamonteiro.com.br
e ex-âncora da TV Globo e Bloomberg.

09/07/25
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