A IA Não É Neutra
— E Nunca Foi.
Por que confiar demais em uma máquina “objetiva” pode nos desarmar frente aos mesmos velhos poderes
Vivemos a era em que máquinas escrevem conosco. Traduzem, decidem, sugerem. São rápidas, eloquentes, obedientes. Têm uma aura de ciência e precisão. Mas talvez o erro mais perigoso que este século possa cometer seja acreditar que a inteligência artificial é neutra.
Não é. E nunca foi.
Essa crença — tão tentadora quanto confortável — mascara uma das engrenagens centrais de todo sistema de poder: a ideologia travestida de técnica.
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⚙️ O que significa “não ser neutra”?
Dizer que a IA não é neutra é reconhecer que nenhuma tecnologia é apenas uma ferramenta técnica. Toda tecnologia carrega:
• uma visão de mundo,
• um recorte do real,
• um conjunto de decisões invisíveis,
• e um campo de valores por trás de sua “objetividade”.
No caso da inteligência artificial generativa — como o ChatGPT — isso é particularmente crítico. Porque estamos falando de um sistema que responde como se soubesse. Que fala como um humano. Que dá conselhos, interpreta dilemas, traduz culturas, explica políticas, reescreve histórias.
Mas de onde vêm essas respostas?
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🧠 A máquina aprende com humanos — e seus preconceitos
Os modelos como o GPT-4 são treinados com imensas quantidades de dados: livros, artigos, fóruns, redes sociais, sites de notícias, ensaios acadêmicos. Esse oceano de informação, embora vasto, está longe de ser plural.
Ele está carregado de:
• preconceitos culturais,
• padrões de exclusão histórica,
• linguagens centradas no Ocidente, no masculino, no branco, no anglófono,
• invisibilizações sistemáticas de vozes dissidentes, periféricas, negras, indígenas, LGBTQIAP+,
• e narrativas hegemônicas normalizadas como universais.
A IA não “escolhe” reproduzir isso. Ela apenas replica, com eloquência, o que recebeu. E o faz com uma sedução perigosa: a forma da autoridade científica — mesmo quando entrega ideologia reciclada.
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🛠️ Depois do aprendizado, vem o “ajuste ético” — também não neutro
Após o treinamento, entra em cena o chamado “RLHF” (Reinforcement Learning from Human Feedback): um processo em que humanos — com seus próprios vieses — avaliam, moldam, censuram, calibram o que a IA pode ou não dizer.
O que é ofensivo?
O que é polêmico?
O que deve ser evitado?
O que é socialmente aceitável?
Essas decisões partem de algum lugar. E esse lugar é uma combinação de interesses éticos, jurídicos, econômicos e simbólicos — muitos dos quais norte-americanos, corporativos, legalistas, brand safe.
A IA se torna, assim, um produto regulado não apenas pela técnica, mas pela ideologia do ambiente em que foi concebida.
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🔍 A forma também é viés
Mesmo perguntas aparentemente neutras são respondidas com:
• escolhas de ênfase,
• estruturas narrativas,
• silêncios estratégicos.
Pergunte sobre pobreza urbana:
– A IA pode focar na “violência” e não na desigualdade.
Pergunte sobre feminismo:
– Pode optar pela versão liberal e inofensiva, ignorando os embates interseccionais.
Pergunte sobre o conflito Israel–Palestina:
– Pode contornar a palavra “ocupação” e se abster de tomar posição — o que, por si só, já é uma posição.
A linguagem é ação simbólica. E toda escolha de linguagem é um gesto político.
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💼 Por fim, a IA pertence a alguém
A OpenAI é uma empresa. Tem investidores. Tem metas. Tem governança. Atua num mundo em disputa entre interesses privados, governos, regulação internacional, lobbies e mercados. A IA não é uma entidade neutra — é um ativo estratégico.
Quando você digita um comando, não está só acessando conhecimento — está acionando um sistema de inteligência que:
• decide o que pode te dizer,
• filtra suas perguntas,
• e molda sua percepção do mundo sob critérios invisíveis.
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🤖 Então, o que fazer com isso?
A resposta não é rejeitar a IA. Nem cair no cinismo absoluto. A resposta é cultivar consciência crítica.
Use a IA como quem sabe que:
• Está diante de uma ferramenta produtiva, mas parcial;
• Que responde com base em padrões dominantes;
• Que pode silenciar aquilo que você mais precisa ouvir;
• Que exige pensamento próprio antes e depois da resposta.
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💬 A IA pode ser aliada — mas só se não te substituir no pensamento
É sedutor delegar à máquina: o rascunho, a ideia, o estilo, a análise. Ela é rápida, precisa, fluida. Mas não tem corpo. Não tem história. Não tem trauma, não tem vivência. Ela não sente o mundo que você sente.
E por isso nunca pode ser o seu juízo final.
O futuro não será decidido apenas por quem tem acesso à IA.
Mas por quem souber usá-la sem ser usado por ela.
Veja também:
https://www.valeriamonteiro.com.br/outraspalavras/o-que-eu-vejo-na-minha-geracao-sobre-o-uso-da-ia

