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A nova face do tráfico humano: quando o aliciamento começa pelo afeto.

Scroll down for English version.


Os crimes mais ruidosos costumam envolver cifras e poder — corrupção, tráfico de drogas, contrabando de armas. Mas há outro crime, silencioso e igualmente lucrativo, que se alimenta das sombras e da vulnerabilidade humana: o tráfico humano.


Segundo a ONU, esse mercado movimenta mais de 150 bilhões de dólares por ano. É o terceiro crime mais rentável do mundo, atrás apenas do tráfico de drogas e de armas. Ainda assim, segue invisível, sustentado por manipulações emocionais tão sofisticadas que transformam a vítima em cúmplice involuntária.


O recente desfecho da trajetória do ex-príncipe Andrew ajuda a iluminar essas sombras. Em outubro de 2025, o rei Charles III retirou oficialmente seus títulos e ordenou que deixasse a residência real, após novas revelações sobre sua ligação com Jeffrey Epstein — o financista americano condenado por explorar jovens mulheres em uma rede global de tráfico sexual.


A queda de Andrew, símbolo da elite britânica, expõe o alcance e a sutileza desse crime. Mostra que o tráfico humano não se limita à marginalidade: também habita os salões de poder.



O grooming como primeira armadilha.


O caso Epstein revelou que o tráfico humano moderno raramente começa com violência física. Ele nasce do grooming — processo de manipulação emocio

nal usado para conquistar a confiança da vítima antes de dominá-la.


Epstein e sua cúmplice, Ghislaine Maxwell, ofereciam oportunidades, promessas de carreira e segurança. Entregavam, em troca, abuso e silêncio. O grooming é a engenharia emocional do cárcere: o treino da mente para aceitar o inaceitável.



Nem sempre há luxo — às vezes, só silêncio.


Casos como o de Andrew ganham manchetes, mas a maior parte das vítimas vive fora dos holofotes.

O tráfico humano acontece em cozinhas, em apartamentos compartilhados, em relações afetivas e profissionais travestidas de oportunidade — e, muitas vezes, sem sair do país de origem.


Recebo mensagens de mulheres que vivem no exterior e relatam medo, isolamento e controle. Nenhuma imaginou, ao aceitar uma proposta de trabalho ou um relacionamento, que estaria entrando num ciclo de aprisionamento emocional e econômico.


Mas o tráfico humano não precisa de fronteiras. Ele começa quando alguém é privado do direito de escolher, de ir e vir, de dizer não.



Casamento servil: quando o amor se torna instrumento de exploração.


Nem todo tráfico humano depende de redes criminosas. Às vezes, ele se disfarça de amor.

Há homens que se aproximam de mulheres vulneráveis, prometem estabilidade, engravidam-nas, obtêm benefícios legais ou migratórios — e, depois, as abandonam.

Alguns mantêm os filhos como forma de controle; outros usam a dependência emocional como corrente invisível.


Essas histórias não são apenas dramas pessoais: configuram exploração emocional e reprodutiva, e, em certos contextos, tráfico humano na forma de casamento servil — reconhecido pela ONU e pela legislação brasileira como uma forma de escravidão moderna.


A Lei nº 13.344/2016, que incorpora o Protocolo de Palermo, define tráfico de pessoas como o uso de fraude, engano ou abuso de vulnerabilidade com o fim de exploração.

Quando alguém se casa apenas para obter cidadania, visto ou vantagem econômica — às custas da dignidade do outro — há exploração.


O corpo e o afeto da mulher tornam-se moeda em uma transação desigual, onde o amor é o disfarce da posse.

O agressor que prende pelo afeto age com a mesma lógica do explorador que prende pelo lucro: ambos se alimentam da vulnerabilidade humana.



O crime que não estampa capas.


Diferente do tráfico de drogas ou de armas, o tráfico humano raramente produz imagens.

Não há tiros nem guerras — apenas silêncio e desaparecimentos.

E enquanto o mundo se escandaliza com o colapso de um príncipe, milhões permanecem presos em redes invisíveis, sem voz e sem resgate.


O caso Epstein e seus desdobramentos dentro da aristocracia britânica apenas expuseram o que há muito se repete: onde há poder, há silêncio; e onde há silêncio, há vulneráveis sendo explorados.



Conclusão — nomear o invisível é o primeiro passo para combatê-lo.


O tráfico humano não começa com o sequestro, mas com o convencimento.

Com a promessa de amor, trabalho ou futuro — e termina quando a pessoa perde o direito de ser livre.


Falar sobre isso é uma urgência moral.

Porque o tráfico humano é o crime que mais depende da nossa distração — e o que mais precisa da nossa atenção.

A nova face do tráfico humano: quando o aliciamento começa pelo afeto.

Inglês:


⚖️ The New Face of Human Trafficking: When Grooming Becomes the Gateway to Exploitation.


The loudest crimes are those tied to money and power — corruption, drugs, arms. Yet another form of trafficking, silent and just as lucrative, thrives in the shadows: human trafficking.


According to the United Nations, it generates over $150 billion a year. It is the world’s third most profitable crime, after drugs and weapons. Still, it remains largely unseen, sustained by psychological manipulation so refined that it turns victims into unwitting accomplices.


The recent downfall of former Prince Andrew sheds new light on this darkness. In October 2025, King Charles III stripped him of his titles and ordered him to vacate his royal residence after new revelations about his ties to Jeffrey Epstein — the American financier convicted of exploiting young women in a global trafficking network.


Andrew’s fall reveals how deeply power and silence intertwine. Human trafficking is not confined to the underworld; it thrives in palaces too.



Grooming: The First Trap.


The Epstein case showed that modern trafficking rarely begins with visible violence. It begins with grooming — the psychological process of gaining trust to later control.


Epstein and Ghislaine Maxwell offered opportunities, scholarships, and access. They promised safety and success — and delivered abuse and submission. Grooming is the emotional architecture of captivity: the training of the mind to accept what should never be accepted.



Not Always Glamour — Often Just Silence.


While the powerful dominate headlines, most victims live in silence.

Human trafficking unfolds in kitchens, workplaces, and relationships that masquerade as love or opportunity — often without crossing any border.


I receive messages from women abroad who describe fear, isolation, and control. None imagined that accepting a relationship or a job could lead to emotional and economic captivity.


But trafficking doesn’t always involve passports. It begins when someone is stripped of the right to choose, to move, or to say no.



Servile Marriage: When Love Becomes a Tool of Exploitation.


Not all trafficking depends on criminal networks. Sometimes it hides inside affection.

Men approach vulnerable women, promise stability, impregnate them, secure legal or migratory benefits — and then discard them.

Some keep the children as leverage; others use emotional dependence as a leash.


These are not “relationship dramas.” They are forms of emotional and reproductive exploitation, and in many cases, human trafficking through servile marriage — recognized by the UN and Brazilian law as a modern form of slavery.


Brazil’s Law 13.344/2016, aligned with the UN Palermo Protocol, defines human trafficking as the use of deceit or abuse of vulnerability for the purpose of exploitation.

When someone enters a marriage solely to gain residence, citizenship, or financial advantage — at the cost of another’s dignity — that is exploitation.


Love becomes the disguise of ownership.

The abuser who imprisons through affection acts with the same logic as the trafficker who imprisons for profit: both feed on human vulnerability.



The Crime That Rarely Makes Headlines.


Unlike drugs or arms, human trafficking leaves no spectacle.

No gunfire, no gangs — only silence and disappearance.

And while the world gasps at the downfall of a prince, millions remain trapped in invisible networks that no one photographs.


The Epstein case only confirmed what has long been true: where there is power, there is silence — and where there is silence, there are victims.



Conclusion — Naming the Invisible Is the First Step.


Human trafficking rarely begins with violence. It begins with persuasion — with the promise of love, work, or salvation — and ends with the loss of freedom.


Speaking about it is not just necessary; it is an act of resistance.

Because human trafficking is the crime that thrives on our distraction — and collapses under our awareness.


A nova face do tráfico humano: quando o aliciamento começa pelo afeto.

Por Valéria Monteiro.

Jornalista, fundadora do site valeriamonteiro.com.br

e ex-âncora da TV Globo e Bloomberg.

1 comentário

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iza borgonovi tauil
há 7 dias
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Tema de suma importância. Muito bom!


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