Realidades de Brinquedo: Entre o Reborn e a Pós-Verdade.
- Valéria Monteiro

- 23 de mai.
- 6 min de leitura
Outro dia, recebi uma postagem no Instagram que me fez rir com aquele tipo de desconforto que só as boas piadas provocam. A imagem era de um boneco inflável do DETRAN, desses que balançam os braços ao vento, improvisado como cone de trânsito. A legenda dizia:
“Isso mesmo, é bom trabalhar pra pagar o hospício da mamãe!”
Era uma piada — mas não só. Uma ironia sutil, como se os bebês reborn tivessem crescido e, agora, estivessem por aí, desviando o trânsito da vida real. A linha entre o absurdo e o plausível anda fina.
O Fenômeno dos Bebês Reborn
Lembrei na hora da febre dos reborn dolls, bonecos hiper-realistas que simulam bebês recém-nascidos em cada detalhe: o peso, a pele, o choro (quando programados para isso), o cheiro de talco. Vi recentemente um especial da BBC sobre o tema. O documentário mostrava como esses bonecos ajudam mães a atravessar o luto por filhos natimortos ou falecidos. Uma forma real de sobrevivência emocional. Uma ponte entre o trauma e a possibilidade de seguir respirando. E isso merece todo o nosso respeito.
Assista ao documentário da BBC sobre bebês reborn
A Linha Tênue entre o Simbólico e o Real
Mas a discussão se torna mais complexa quando a sociedade começa a tratar essas realidades artificiais como equivalentes ao real — e mais: quando começa a se adaptar a elas. Há quem exija prioridade no transporte público com um reborn nos braços. Há quem defenda políticas públicas para proteger quem vive essas maternidades simbólicas. E há, claro, um mercado que cresce oferecendo não só bonecos, mas uma experiência completa de “maternidade personalizada”.
O problema não está em criar espaços de acolhimento. O problema começa quando a linha entre o que é simbólico e o que é concreto se desfaz — e passamos a exigir que todos entrem na nossa narrativa, por mais artificial que ela seja. Como na série de horror The Servant, onde uma mulher em luto cuida de um reborn como se fosse seu bebê verdadeiro. A série parte da compaixão, mas mergulha no terror justamente quando a realidade começa a ceder demais ao delírio.
Assista à série The Servant na Apple TV+
A Busca pelo Autoconhecimento e a Realidade
E então me pergunto: o que aconteceu com aquela velha e sábia ideia de que a saúde mental consiste em buscar autoconhecimento para se adequar à realidade — e não o contrário?
Em que ponto passamos a tratar como sinal de evolução aquilo que, não faz muito tempo, era considerado um risco: fugir da realidade?
Antes, ir à terapia era um gesto de coragem — o primeiro passo para aceitar as circunstâncias incontroláveis da vida e encontrar modos de lidar com elas. Hoje, parece que o mundo se inclina para o inverso: se a realidade dói, muda-se a realidade. Cria-se uma versão mais confortável e se pede — ou se exige — que o entorno a valide. Mas será que isso é cura… ou apenas fantasia bem embalada?
A Importância da Verdade Objetiva
É aí que alguém sempre levanta a mão e pergunta, quase com orgulho cínico: “mas afinal, o que é verdade?”
Parece sofisticado duvidar de tudo, como se a verdade fosse só uma questão de ponto de vista. Mas isso não é pensamento crítico — é relativismo oportunista. Porque, sim, há fatos. Há verdades objetivas.
Água ferve a 100ºC ao nível do mar. Crianças de verdade precisam de comida e cuidado. Ditaduras matam. Vacinas salvam.
O que sentimos sobre esses fatos pode variar — mas os fatos, em si, continuam sendo verdadeiros, independentemente de nossas crenças, dores ou vontades.
O Perigo da Pós-Verdade
O perigo é que, uma vez aberta essa brecha, ela serve não só ao alívio pessoal, mas também à manipulação coletiva. E se um dia um ditador decidir que a verdade incomoda? Que é melhor substituí-la por uma narrativa mais “aceitável”?
E se formos obrigados a repetir essa narrativa, por medo ou conveniência, mesmo sabendo que é falsa?
E se isso acontecer justamente na maior democracia do planeta?
A pós-verdade, esse conceito que parece moda acadêmica, já virou modo de vida. Estamos cada vez mais inclinados a aceitar “o que parece certo” no lugar do que é certo — especialmente se isso evitar confronto, dor ou desconforto. A consequência? Um mundo fragmentado em bolhas de realidade privada, onde cada um vive seu script e espera que os demais atuem como figurantes.
Leia mais sobre o conceito de pós-verdade na Academia Brasileira de Letras
Conclusão
Não se trata de desdenhar do sofrimento alheio. Muito menos de zombar de quem, por motivos profundos, encontra nos reborn um bálsamo para dores reais. Trata-se de lembrar que curar-se é também reconhecer os limites entre o que sentimos e o que o mundo é. Porque se tudo vira brinquedo, inclusive a realidade, a loucura deixa de ser exceção — e vira o novo normal.
A vida, como o trânsito, precisa de regras minimamente consensuais para funcionar. Bonecos infláveis não são guardas. Bebês reborn não são filhos. E por mais que essas ficções nos ajudem por um tempo, é no retorno à verdade que a vida reencontra o pulso.

Inglês:
Toy Realities: Between Reborns and the Post-Truth Era.
By Valeria Monteiro.
The other day, I came across a meme on Instagram that made me laugh out loud — and then pause. The photo showed one of those flailing inflatable figures used to redirect traffic in Brazil, like a wind-powered puppet in uniform. The caption read:
“That’s right, buddy. Off to work — Mommy’s asylum doesn’t pay for itself!”
It was absurd. It was funny. And weirdly, it made a kind of sense — as if those hyperrealistic reborn dolls had grown up and were now out in the world, managing the chaos we can’t quite handle ourselves.
The Rise of the Reborn
Reborn dolls are more than toys. They’re uncanny replicas of newborn babies — designed with weighted limbs, realistic skin, and even heartbeat simulators. A recent BBC documentary explored how these dolls have helped grieving mothers navigate the unbearable pain of losing a baby. In those stories, the dolls aren’t delusions — they’re lifelines. A temporary comfort to anchor someone through an emotional storm.
Watch the BBC documentary on reborn dolls
When Comfort Crosses a Line
But where do we draw the line between healing and avoiding reality altogether?
There are now communities where people treat their reborn dolls as real children — not just in private grief, but in public life. Some bring them on planes and expect early boarding. Some argue for parental leave. Businesses cater to these “mothers,” selling bassinets, clothes, even strollers custom-fit for dolls. In a sense, society is being asked to play along.
What starts as symbolic can slowly slip into something else — a sort of consensual make-believe.
Apple TV+’s The Servant takes this tension to the extreme: a grieving mother in denial raises a reborn doll as if it were her real child. It begins with sympathy, but spirals into horror once everyone around her is pulled into the illusion.
Watch The Servant on Apple TV+
What Happened to Facing Reality?
I couldn’t help but wonder: What happened to the idea that self-knowledge and therapy were about adjusting to reality — not escaping it?
We used to see healing as a process of facing the world as it is, even when it’s painful. Now it sometimes feels like we’re encouraged to reshape the world to fit our feelings — and expect others to validate that version.
Is that resilience? Or just fantasy with better PR?
But What Is Truth, Anyway?
I hear the argument all the time: “Truth is subjective.”
But that’s not wisdom — that’s intellectual laziness dressed up as open-mindedness.
Because objective truth exists.
Water boils at 212°F. Children — real ones — need food, shelter, and love. Dictators silence dissent. Vaccines save lives.
You can feel however you want about these facts, but they remain true regardless.
When everything becomes relative, we lose the foundation needed to challenge injustice, protect the vulnerable, or even agree on what’s real.
The Danger of Make-Believe
And here’s where things turn dark: if society begins accepting any version of reality — no matter how fictional — it becomes easier for powerful forces to manufacture narratives and suppress facts.
What happens if one day we’re forced to believe what isn’t true?
What if a leader in a major world power declares a fabricated story to be law, and dissent becomes dangerous?
It’s not a hypothetical. We’ve already seen it — in countries where saying the wrong thing can get you imprisoned, or worse. In a world seduced by comfort and compliant narratives, truth becomes a casualty.
Read more on “post-truth” from Oxford Languages
A World That Works
None of this is to mock grief, or those who find comfort in symbols. It’s about the broader shift we’re witnessing — a collective temptation to replace reality with replicas.
But there’s a cost.
When everything becomes a toy — even truth — we lose our ability to live together in a shared world.
Life, like traffic, requires common rules. Inflatable puppets aren’t police officers. Reborns aren’t children. And while fantasy has its place, we can’t afford to forget how to return to what’s real.
It’s not only possible to be compassionate and anchored in reality — it may be the only way to stay human in an age that’s drifting further into illusion.
Realidades de Brinquedo: Entre o Reborn e a Pós-Verdade.



Parabéns pela importante colaboração reflexiva. É um sério problema. Mais um que denuncia o risco de nossa sanidade mental coletiva. Muito importante.